Publicado por: sadeckgeo | outubro 21, 2022

Do sequestro da Bioeconomia a um resgate da percepção

Fonte: https://www.facebook.com/futurosindigenas

O texto que transfiro hoje aqui para o blog, foi escrito por mim para uma das disciplinas que participei no programa de pós-graduação em Ciências Ambientais da UFPA. Espero que ajude e que gere discussões a certa do tema. Boa leitura!

Panorama geral da Bioeconomia

O termo Bioeconomia surge dos estudos do matemático e economista Nicholas Georgescu-Roegen que tinha uma visão mais sistêmica do processo produtivo da economia, segundo Cechin & Veiga (2010), se a economia pegar recursos de qualidade de uma fonte natural e despeja resíduos sem qualidade para a economia, de volta para a natureza, então não é possível tratar a economia como um ciclo fechado e isolado da natureza. Essa percepção trouxe para o seio das discussões econômicas princípios de ecologia nunca antes experimentados nesta disciplina tão cartesiana.

Sendo assim, o termo se assenta sobre uma perspectiva materialista histórica e dialética da interação do homem com a natureza estabelecida por Marx como metabolismo, que tenta ser resgatado na teoria de Georgescu-Roegen, que parte da premissa visível de que o homem não está em equilíbrio com a natureza, ou nas palavras de Marx uma ruptura metabólica. Conforme nos mostram Saito (2021) e Foster (2005), a causa fundamental da alienação sobre a produção capitalista reside na relação especificamente moderna dos produtores com a sua condição objetiva de produção, afetando assim a natureza em um processo de acumulação infinita de recursos finitos.

Logo, é fundamental entendermos aqui outros dois conceitos estabelecidos dentro da bioeconomia que são o decrescimento e o bem viver, o primeiro nos indica que o aumento constante do Produto Interno Bruto (PIB), não é sustentável pelo ecossistema global, ou seja, não existe crescimento infinito e o segundo se apresenta como uma oportunidade para construir coletivamente uma nova forma de vida, onde os povos vivem em harmonia com a natureza (ACOSTA, 2019; SOLÓN, 2019) e a lógica de produção não é mais a do capital e sim a cultural.

O sequestro da Bioeconomia

No entanto, o termo bioeconomia foi sequestrado pelo capital e transformado em uma micro economia de escala, ou transformado em uma pedra de salvação da crise do capitalismo, que agora se veste de verde para continuar a exploração dos recursos naturais e das sociedades. Crise esta, causada pelo próprio capital com o seu método de acumulação de capital, esse processo seguido pelo capital, segundo Monerat (2021), tem como objetivo, se ecologizar tão somente para superar os obstáculos à valorização, e não para alcançar uma sustentabilidade em geral. Isso fica perceptível na fala de autoridades como Carlos Nobre, quando ele se propõe a imaginar um Brasil que explore a biodiversidade de um ponto de vista econômico expressivo (TALKS, 2022), ou mesmo na prática de algumas empresas que se valem de um marketing verde, ou de um selo verde, ou um município verde para ter maior lucratividade.

A percepção de mudança ou do sequestro do conceito, fica claro ao vermos a gênese em contrapartida com as colocações de autores como Mariana Vick, a Confederação Nacional da Indústria e Ina Horlings e Terry Marsden, que priorizam aspectos tecnológicos enquanto instrumental e de produtos para a sociedade, ou com destaque para o segmento agropecuário, ou ainda com caráter global e corporativo respectivamente (RAMOS, 2020).

O termo como um slogan é muito satisfatório do ponto de vista político e ideológico, pois assim pode-se construir uma narrativa do desenvolvimento necessário que tem sido visto no discurso de diversos políticos, acadêmicos, celebridades, empresas, governos e etc. (MORENO, 2020)

Todo percurso do sequestro do pensamento e ação da bioeconomia pode ser exemplificado com a história do açaí, desde registros mais antigos aos dias atuais, com a forma de cultivo, consumo e venda.

Açaí e Bioeconomia

Ao longo da história, registros paleobotânicos na Amazônia têm comprovado o processo de domesticação de espécies pelos índios (CLEMENT, 2021; DOS SANTOS, 2019; CLEMENT, 2016). Esse era um longo processo que tinha possivelmente um cuidado com a biodiversidade, uma vez que os plantios eram feitos inicialmente em área naturalmente abertas e junto com outras espécies que faziam parte da alimentação desses povos, gerando benefícios agrícolas e ecológicos para as espécies, dando origem a autênticas “florestas de alimentos” (KERR & CLEMENT, 1980)Possivelmente esse processo de domesticação tem uma certa contribuição na hiperdominância de espécies na Amazônia, só do gênero Euterpe existem aproximadamente 50 espécies na américa do sul, 9 delas estão na amazônia brasileira e a ecologicamente mais adaptada é a E. oleracea que tem características botânicas como perfilhação de frutos, número de indivíduos por área, regeneração natural, pela importância como fonte de alimento tanto para o ser humano como para a fauna e a sua inegável importância econômica (NEGRÃO, 2019) (Figura 1), foi rankeada na 6° posição com 3,78 bilhões de indivíduos em um rank que o primeiro lugar fica com outra de sua espécie, a Euterpe precatoria que tem 5,21 bilhões de estipes (Tabela 1) conforme artigo publicado na revista Science por Ter Steege et. al., (2013).

Fonte: IBGE CensoAgro, EMBRAPA, 2019

Em nossa pesquisa não encontramos referências de que a domesticação ocorrida preteritamente pelos povos tradicionais tivesse algum interesse econômico, mesmo de troca com outras tribos, mas sim que a domesticação era basicamente para o alimento da comunidade, como nos mostram Toledo e Barrera-Bassols (2008), ao demonstrarem que a  biodiversidade contida em uma localidade é o resultado das interações humanas de forma ampla e complexa, a partir da cultura humana local, que vai formando, ao longo do tempo, um conjunto dos saberes locais, ou seja, um relação com e não sobre a natureza. Esta percepção está intimamente ligada à gênese do conceito de bioeconomia como proposto por Georgescu-Roegen.

Tabela 1: Características populacionais das 20 espécies arbóreas mais abundantes da Amazônia

Recentemente com a chegada da Revolução 4.0 na economia tradicional cunhou-se o termo Amazônia 4.0 afirmando que é preciso apostar na bioeconomia baseada no uso dos ativos biológicos e biomiméticos para desenvolver a Amazônia, mas qual o desenvolvimento que queremos? Pois ao que tudo indica esse desenvolvimento proposto pela Bioeconomia sequestrada vem cheio de um preconceito, racismo ambiental e subjugação dos saberes da cultura local.

Vestido com a roupa da terceira via propõe usar os recursos que outrora serviam para conservar os recursos, isso nos aparenta ser só mais uma fronteira que o capital precisou usar. Em reportagem recente publicada pela RAISG, Nobre frisa que “Hoje, da polpa do açaí derivam dezenas de diferentes produtos para as indústrias alimentícia, nutracêutica, cosmética etc, gerando já mais de 1,5 bilhão de dólares para a economia Amazônica a cada ano, tendo melhorado a renda de mais de 250 mil produtores.” Porém esquece-se do que nos aponta Freitas, et al. (2021) em estudo que sugerem que a intensificação do açaí ocasionado pelo frenesi da lucratividade altera a estrutura das assembleias de plantas lenhosas em florestas estuarinas amazônicas, particularmente a abundância de árvores, riqueza de espécies e padrões de dominância de espécies, ou seja, o cultivo do açaí está levando a uma perda significativa da biodiversidade na Amazônia com o avanço da monocultura da fruta (CNS et al., 2021). Biodiversidade essa que talvez seja nossa maior riqueza.

Sendo assim, com essa configuração da Bioeconomia, fica claro para nós que o conceito teve um sequestro e uma mudança de paradigma que o transformou em uma micro economia de escala que não considera nem o tempo da natureza nem a cultura dos povos.

Uma tentativa de resgate

Por esses motivos, alguns pesquisadores (Paulo Moutinho – IPAM, Ima Vieira – MPEG, Iran Magno – Greenpeace, Francisco Costa – UFPA, Ennio Candotti – MPEG, Elisa Wandelli – EMBRAPA, Manuel Amaral – IEB, entre outros) tentam resgatar o conceito e fortalecer sua proposta dando uma nova esperança de que possa dar certo. Recentemente ocorreu o Fórum Mundial de Bioeconomia em outubro de 2021 em Belém-PA (https://www.forumbioeconomia.com.br/) e ao mesmo tempo e separado ocorreu, em contraposição ao primeiro, o Encontro Amazônico da SocioBiodiversidade organizado pelo Conselho Nacional do Seringueiros (CNS), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e outras organizações de povos e comunidades tradicionais.

“Nós, povos indígenas e populações tradicionais, já promovemos a sociobiodiversidade há milênios, através de nossa relação com a floresta e com nossos territórios. É fundamental que a nossa atuação e importância seja reconhecida e fortalecida a partir de nossos conhecimentos. Estamos promovendo esse evento para criar um espaço de discussão e marcar nossa posição nesse debate sobre bioeconomia”, enfatizou Toya Manchineri, assessor político da Coiab. (COIAB, 2021)

A ideia do Encontro Amazônico da SocioBiodiversidade era fazer debate público sobre o papel da Bioeconomia na conservação do bioma amazônico e ouvir as vozes da floresta já que  estas não foram ouvidas no Fórum Mundial de Bioeconomia. 

A ideia principal da SocioBiodiversidade é integrar, garantir a territorialidade das populações tradicionais aliado aos interesses delas e a manutenção da natureza. De forma mais conceitual diz respeito a um conjunto de bens e serviços gerados por meio da conexão entre a diversidade biológica, a prática de atividades sustentáveis, beneficiando produtos extraídos da floresta, e o manejo desses recursos por meio do conhecimento cultural e ancestral das populações tradicionais (BRASIL, 2009; CNS et al., 2021; MENEZES, 2021).

Com essa outra perspectiva de uma relação harmônica entre si, com sustentabilidade, justiça social e respeito às especificidades culturais e territoriais, que garantem a manutenção e a valorização de suas relações sociais, suas práticas e saberes, dos direitos decorrentes, gerando renda e promovendo a melhoria do ambiente em que vivem e da sua

qualidade de vida, temos um resgate ou uma releitura que pode nos apontar caminhos muito mais pertinentes para a garantia da nossa vida e das vidas futuras.

Prelúdio

É impossível concluir este tema, uma vez que ele faz parte de um processo dinâmico e de rearranjo das forças produtivas que vem se fantaseando de verde nos ultimos anos e tem ganhado espaço e adeptos no discurso nacional e internacional, sendo assim, é de fundamental importância discutirmos esse cenário com uma visão crítica e ecológica de que relação queremos ter com a natureza a fim de como espécie não sermos apagados da história do planeta por nós mesmos.

Referências

ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. [s.l.]: Editora Elefante, 2019. 

BRASIL. Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade. MDA, MMA, MDS, Julho, 2009

CECHIN, Andrei Domingues; VEIGA, José Eli da. A economia ecológica e evolucionária de Georgescu-Roegen. Brazilian Journal of Political Economy, v. 30, n. 3, p. 438–454, 2010. 

CLEMENT, Charles Roland et al. Uso de uma abordagem genômica comparativa para detectar padrões nos processos de domesticação de populações de piquiá (Caryocar villosum) e pequis (C. brasiliense e C. coriaceum). 2021.

CLEMENT, Charles Roland et al. Domesticação de plantas cultivadas na bacia do alto rio Madeira. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 193-205, 2016.

CNS; COIAB; CONAQ; et al. Carta da Amazônia 2021: Aos participantes da 26a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26). In: Encontro Amazônico Da Sociobiodiversidade. [s.l.: s.n.], 2021. Disponível em: <https://s3.amazonaws.com/appforest_uf/f1635878454366x123986991266021200/CARTA%20DA%20AMAZ%C3%94NIA%202021_COP%2026_PORT.pdf&gt;. Acesso em: 4 May 2022. 

COIAB. Belém sedia Encontro Amazônico da SocioBiodiversidade. COIAB. Disponível em: <https://coiab.org.br/conteudo/bel%C3%A9m-sedia-encontro-amaz%C3%B4nico-da-sociobiodiversidade-1634325772404×631246297197969400&gt;. Acesso em: 4 May 2022. 

DOS SANTOS, Geraldo Mendes. Domesticação da floresta & subdesenvolvimento da Amazônia, ética & ciência: papel social do cientista. In: GEEA: Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos. v. 14. ed. Manaus: Editora INPA, 2019. Disponível em: https://repositorio.inpa.gov.br/bitstream/1/4660/1/geea_tomo14.pdf. Acesso em: 20 abr. 2022.

FACHIN, Patricia. Amazônia 4.0. A criação de ecossistemas de inovação e o enraizamento de uma nova bioeconomia. Entrevista especial com Carlos Nobre. RAISG. Disponível em: <https://www.amazoniasocioambiental.org/pt-br/radar/amazonia-4-0-a-criacao-de-ecossistemas-de-inovacao-e-o-enraizamento-de-uma-nova-bioeconomia-entrevista-especial-com-carlos-nobre/&gt;. Acesso em: 4 May 2022. 

FREITAS, Madson A.B.; MAGALHÃES, José L.L.; CARMONA, Carlos P.; et al. Intensification of açaí palm management largely impoverishes tree assemblages in the Amazon estuarine forest. Biological Conservation, v. 261, p. 109251, 2021. 

FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. [s.l.]: Editora Record, 2005. 

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KERR, Warwick Estevam; CLEMENT, Charles R. Práticas agrícolas de consequências genéticas que possibilitaram aos índios da Amazônia uma melhor adaptação às condições ecológicas da região. Acta Amazonica, v. 10, n. 2, p. 251–261, 1980. 

MENEZES, Helen. O que é sociobiodiversidade? Sosamazonia. Disponível em: <https://sosamazonia.org.br/tpost/lb65m0vse1-o-que-sociobiodiversidade&gt;. Acesso em: 4 May 2022. 

MONERAT, Julio Cesar Pereira. Bioeconomia e financeirização dos riscos ambientais: Formas capitalistas de enfrentamento da crise ambiental: A crítica. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, v. 13, n. 2, p. 174–204, 2021. 

MORENO, Camila; As roupas verdes do Rei: economia verde uma nova forma de acumulação primitiva In:DILGER, Gerhard; LANG, Miriam; PEREIRA FILHO, Jorge (org.). Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. [s.l.]: Editora Elefante, 2020. p.261.

NEGRÃO, Antônia do Socorro Silva. ETNOCONHECIMENTO DO MANEJO DE AÇAIZAIS: A elaboração de material didático para contribuir com o diálogo de saberes entre ribeirinhos e assistência técnica nas Ilhas de Abaetetuba – PA. Dissertação, UFPA – NUMA, 2019. 

RAMOS, Carlos Augusto Pantoja. Porque as palavras têm força: é necessário chamar o novo paradigma, no mínimo, de “Biossocioeconomia”. Belém: Recanto Das Letras, 2020. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/7121811&gt;. Acesso em: 12 Apr. 2022. 

SAITO, Kohei. O ecossocialismo de Karl Marx: Capitalismo, natureza e a crítica inacabada à economia política. [s.l.]: Boitempo Editorial, 2021. 

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SOLÓN, Pablo. Alternativas sistêmicas: Bem Viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. [s.l.]: Editora Elefante, 2019. 

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TOLEDO, Víctor M.; BARRERA-BASSOLS, Narciso. La memoria biocultural: la importancia ecológica de las sabidurías tradicionales. [s.l.]: Icaria Editorial, 2008. 

VICK , Mariana . O que é bioeconomia, e qual o lugar do Brasil nesse campo. Nexo Jornal. Disponível em: <https://pp.nexojornal.com.br/topico/2020/07/22/O-que-%C3%A9-bioeconomia-e-qual-o-lugar-do-Brasil-nesse-campo&gt;. Acesso em: 13 Apr. 2022. 


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